terça-feira, 17 de novembro de 2009

Mais um melodrama de clichês urbanos

     Eu já não me importava com os salários mensais, nem com o que fazer com eles, parece clichê, mas era assim mesmo (tinha até vergonha de falar) me sentia - imagine - vazio e só, e pior, não sabia o motivo. Meus amigos achavam graça e falavam "quanta bobagem", eles nada entendiam daquele vão que havia me invadido, afinal já tinha mais de 30, e pessoas nessa idade já não sentem essas coisas. Nessa tarde não sentia meu coração batendo, nem o inflar de meus pulmões. Estava ficando literalmente vazio. O desespero tomou conta do exterior ainda existente de meu corpo, e eu sai, sem dar explicações, mais cedo do trabalho. Precisava entender porque meu corpo parecia estar sumindo e por que tinha um boneco de neve na minha varanda. E de repente minha infância e meus momentos mais raros flutuavam como de mãos dadas, por meus globos oculares. Devo estar morrendo - pensei. Mas o que eu vi no fim das contas foi que tinha conseguido problemas aceitáveis e que meu futuro parecia promissor aos olhos de todos. Então por que estava sendo tão irritantemente melodramático? Isso eu não sabia, só sabia que não conseguia parar.
           Oh, sim!- lembrei de súbito- Era por causa dela. A moça que me deixou roubar-lhe um beijo e depois deu tchau com uma reluzente aliança que realçava as unhas vermelhas (forma singela de dizer que estavamos tendo um caso e ela era casada). Ora, mas não podia estar assim só por uma mulher. É claro que, no outro dia, quando fui contar ao meu amigo confidente, este sorriu e repetiu o discurso que eu mesmo vivia exibindo, “Mulheres sempre tentam achar um brilho a mais nos olhos do homem que a beijou, mas não aceitam que eles querem apenas um conforto que proporcione prazer em horas inusitadas". Depois disso eu me preparei cerca de uma semana, pra tomar coragem e ir falar com ela. Isso foi me preenchendo aos poucos, sabe? E aconteceu, naquele fatídico dia em que eu, é claro, esbarrei com ela e o marido na festa da empresa. Ela com um vestido decotado que provocava até a estátua de gelo da mesa central, e os olhos em posição fatal de flerte em minha direção. Eu, ingênuo, a chamei num canto e declarei meus sentimentos enquanto ela me explicava, apalpando suavemente meus ombros, que não podia abandonar seu casamento, mas que suas portas estariam sempre abertas para uma visita esporádica. Acabado, eu me despedi dela e do marido, e fui pra casa.
               A partir dai as coisas só pioraram. Eu a ligava todos os dias oferecendo uma visita enquanto meus amigos liam para mim o significado de esporádico. Depois eu descobri que ela estava saindo com três amigos meus ao mesmo tempo, simultaneamente mesmo (incluindo o meu amigo confidente), e decidi esquecê-los. Mas quando eu ligava o rádio tocavam aquelas músicas que cantavam tudo que estava acontecendo comigo (algo do tipo, 'ela me trocou por meus três amigos, não consigo conviver com isso', num ritmo meloso que grudava na cabeça), e, graças a um inexplicável fenômeno natural, começou a nevar na cidade, mas precisamente no percurso do meu apartamento até o meu trabalho. Minha empregada não arrumava mais meus cômodos alegando alergia à neve, e minhas roupas estavam sempre geladas. Uma semana depois recebi um telegrama me avisando da morte de uma tia-avó que eu nunca conheci, noticia que de forma alguma me afetaria, mas as circunstancias me fizeram sentir muito sua morte, e eu chorei durante dois dias abraçando o boneco de neve (que eu mesmo tinha feito para me distrair) da minha varanda. A consequência obvia disso foi um resfriado absurdamente forte, que eu adquiri como um ensinamento-herança da minha falecida tia-avó, e aprendi a nunca dormir na neve da minha varanda. Bebi até esquecer tudo isso e fui trabalhar.
              E foi assim que eu vim parar aqui, neste quarto gelado lembrando da vicissitude de fatalidades que me aconteceram nesse mês. Sei que pareço um adolescente chorando pela ex-namorada, mas deixar de ser amante, ser alvo de uma nevasca localizada e perder a tia-avó é coisa demais para qualquer coração, ainda mais um com mais de 30 anos de uso. Devo ter suprimido até a última célula tentando superar tudo isso. E quando eu pergunto para os outros, ou para mim mesmo "Deus, por que respiro?", apesar da carga de dramaturgia é realmente uma plausível indagação, eu quero dizer, essas coisas resumem um ser humano de um metro e oitenta a pó. E meus amigos, aqueles pervertidos, acham bobagem porque estão fazendo orgias com minha ex.

3 comentários:

Tainá Lima disse...

Reflexão: consciente e subconsciente, o que os outros pensam, o que eu penso, aparências e enganos , a crise existencial de um homem de 30 anos.
Seu texto: Denso, dramático e real.
beeijoo
tainá

Susy Freitas disse...

acredito que é preciso muito treino para uma mulher criar um narrador homem, porque eles podem até ter os mesmos sentimentos que as mulheres, mas com certeza os expressam de maneira muito mais simples. esse seu moço ainda me parece um tanto feminino pra mim, um tanto complicado demais. mas virei fã do boneco de neve, queria que ele tivesse uma história só pra ele.

Anônimo disse...

eu nem ando lendo conto de fadas tá!
a não ser quando a professora obriga..

Procura "Os Dragões não conhecem o paraíso" do Caio Fernando Abreu e "Leslie Anne Levine" do Decemberists. Juro que apesar da super intertextualidade eu fui criativa. hahaha